quarta-feira, 9 de abril de 2008

GUIDA SCARLLATY


O DESPIR DO EGO




O HOMEM



Nasceu em Lisboa, já lá vão uns tempos. Mas sempre gostou do Algarve, a região que escolheu para viver. Recorda que, quando jovem, passava as suas férias estudantis com a família nas praias algarvias, e um dos petiscos favoritos eram as sardinhas assadas “numa tasca, ali em Portimão debaixo da ponte”, onde ainda hoje lá vai. Sempre que pode. Os tempos foram se passando e formou-se em arquitectura. Viajou muito, passou algum tempo fora de Portugal, onde encontrou um relacionamento amoroso que o conduziu a um casamento precipitado. Anos mais tarde a separação. Era o tempo da “Primavera Marcelista” que mascarava a ditadura. Com o 25 de Abril, a vida torna-se difícil para o jovem arquitecto: “Não havia investimentos, a economia estagnou, e muitos colegas meus optaram por outras paragens, o Brasil”.


De livre vontade, manteve-se em terras lusas e afirma, que face ao tumultuoso PREC (Processo Revolucionário em Curso) ocasionado pelo 25 de Abril, aderiu como simpatizante ao então PPD de Sá Carneiro. “Na época, qualquer atitude tomada, era ‘política’. E fui dos primeiros - acrescenta - a mostrar que a luta contra o avanço desenfreado do golpismo sob capa de comunismo, tinha de ser feita sem medo na rua, e não só nos gabinetes. Era a luta pelo pluralismo e pela liberdade de ideias”. Recorda então que, contra a opinião de sua Mãe (na imagem em cima, numa estreia do Scarllaty - Foto Correio da Manhã) e dos seus amigos e colegas de militância, em 1974 pegou numa mesa de campismo “e em pleno Rossio vermelho montei uma banca de megafone na mão, com pins, bandeiras e informação do PPD. Amigos meus observavam ao longe, caso houvesse sarilho. As pessoas diziam que eu era maluco, que me arriscava a apanhar uma boa tareia - António Capucho, mais tarde Secretário Geral do PSD foi um deles, mas o certo é que o fiz e, acreditem ou não, não me arrependi. Mostrei que assim é que tinha de ser”. E assim foi...

O ARTISTA


Profissionalmente desempregado em finais de 1974 e sem vislumbrar possibilidade de exercer a sua actividade, a nossa personalidade de hoje decidiu pegar em parte dos dinheirinhos amealhados e montar um clube nocturno.


Surgiu assim o primeiro “bar-disco” lisboeta, onde, na fase da euforia revolucionária, os clientes eram obrigados a entrar com smoking ou, pelo menos, em fato e gravata nas grandes festas. Gangas é que não. Pretendeu criar um espaço diferente, recusar as barbas intelectuais da comunização ultra-esquerdista que estavam em moda, e atrair “malta nova e desconhecida, mas com jeito para as artes do palco” e de preferêrncia, bem vestidos.


Fez várias experiências, e surgiu assim o "Scarllaty Club", onde foram apresentados alguns polémicos espectáculos e até apresentados jornais de tendência direitista. Vera Lagoa fez ali a festa de lançamento de "O Sol" de pouca (dita) dura, diga-se de passagem. Foi ousado e rompeu com o espectáculo tradicional. Apostou em algo diferente e o “Scarllaty Club” passou a café-concerto, um espaço que gerou a aparição dos primeiros travestis portugueses. Lídia Barllof escolheu aquele espaço como maternidade da sua vida artística onde conheceu os primeiros sucessos.


Mas, como quase sempre acontece, nem sempre as coisas correm como pretendemos. E o “Scarllaty” também passou de início por uma fase crítica, logo resolvida com mais um novo nascimento: o de Guida Scarllaty (na foto ao lado - o início). A nossa personagem de hoje conta-nos que tudo aconteceu perante a recusa de Lídia Barllof em participar num certo espectáculo de uma noite especial, caso não lhe fosse aumentado o cachet nessa mesma noite: “Foi um confronto desnecessário, uma quase 'chantagem'. Nós tinha-mos a casa cheia de público, e eu não podia falhar pela responsabilidade que tinha. Mesmo assim corri o risco, apesar de ainda nunca ter feito travesti em palco em Portugal. Peguei numa cabeleira, vesti o guarda-roupa disponível, arranjei-me o melhor que podia e, claro, arrisquei-me às assobiadelas, substituindo a Lídia Barllof nos mesmos números que ele fazia. Eu sabia-os todos de cor, foi só dar-lhes o meu jeito”.


E as coisas correram exactamente assim, Guida Scarllaty, a nova estrela do travestismo português acabava de nascer, para rapidamente destronar Barllof do ceptro de vedeta da sua casa. O sucesso multiplicou-se e as polémicas surgiram, qual delas a mais extravagante e desnecessária.


QUEDA E ASCENSÃO



Anos depois, Scarllaty (Guida) em plena ascensão. Scarllaty (Club) em queda frontal. Convidada para cada vez mais novos espectáculos, a nova vedeta é obrigada a percorrer o país e a ausentar-se por longos períodos daquele palco que a viu nascer (na foto, em Londres, no Sttardust Casino, com o famoso mágico Eiric Zee).


Em cada regresso repara que as modas até já param mal, com os empregados a fazerem das suas. Decide fechar o clube e dedicar-se à sua carreira e nova actividade: a de actor. E, tudo vai correndo bem superando mesmo as expectativas. Percorre o país de lés-a-lés e afiança preferir o público nortenho ao restante: “Exigem mais do artista , mas também quando satisfeitos contemplam-nos com a maior ovação”.


Refugiado no Algarve, durante longos anos “logo após o fecho do “Scarllaty Club”, Carlos Ferreira foi-se desmultiplicando em inúmeras actividades: de actor, a relações públicas passando naturalmente pela de animador de grandes espaços e discotecas. Desde 2005 que divide a sua actividade entre Portugal e o Brasil, onde tem participado em inúmeras actividades culturais no mundo do espectáculo. Neste momento é mesmo o Director Geral de animação numa conceituada empresa hoteleira luso-brasileira no Estado da Bahia.


SÓ?


Alguns dizem que é uma pessoa só. Mas não será nada assim: vive rodeado de alguns amigos e de muitos animais, particularmente cães, pelos quais tem uma estima especial, e na companhia dos seus progenitores. Uma família (na foto, acompanhado dos seus pais). E, muitas vezes, convida os amigos para um curto espaço de férias na sua "casa" algarvia, sendo um autêntico mestre na arte de bem receber.


Da sua vida sentimental pouco se sabe, mistério bem guardado, mas socialmente é uma pessoa que não sabe e não quer estar sozinha.


É Guida Scarllaty, sim senhor. Hoje já com os aninhos a aparecerem na sombra, mas mesmo assim afiança que ainda não é altura para escrevermos a crónica das suas memórias. “D. Margarida”, como carinhosamente chama à personagem por si criada (Guida Scarllaty), ainda está “para lavar e durar”, promete.


A nossa personagem de hoje é, pois, o pai de “Guida Scarllaty” e veste-lhe mesmo a pele. É um homem como outro qualquer, mas escolheu conscientemente o lado da profissão de artista mesmo no fio da navalha. Com todos os riscos e consequências. E, pelo que lhe conhecesse-mos, estamos crentes de que se o tempo voltasse atrás, no essencial, não o mudaria nada.


Senhores e senhoras acabamos de apresentar Carlos Ferreira versus “Guida Scarllaty”.


Uma salva de palmas, por favor.


Autor: Júlio Oliveira


01 de Novembro de 1992 - Extratos de artigo publicado no Jornal “Primeiro de Janeiro”

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