sexta-feira, 25 de abril de 2008

Mais uma estrela que ficou a cintilar


Com a saída de "cena" de Guida Scarllaty,
o espectáculo em Portugal ficou mais pobre.
Paira no ar uma nostalgia de saudade
difícil de ser compensada por
outra figura, que jamais se lhe igualará.
Até quando?
Uma grande estrela ficou a cintilar
no firmamento artístico português!




Guida Scarllaty

É o nome artístico do ator português Carlos Alberto Nogueira Ferreira, que dedicou a maior parte de sua carreira ao espetáculo de travesti em Portugal. Nasceu em Lisboa, no ano de 1943, de família modesta, estudou arquitectura em Belas Artes, e mais tarde cursou teatro no Conservatório Nacional de Lisboa, tendo por colegas nomes como Irene Cruz, Nicolau Bryner e Henriqueta Maia, entre outros talentosos atores hoje consagrados.

Na década de 70/80 tornou-se no mais popular comediante português ao "vestir" a pele controversa de um personagem exuberante e inesquecível: Guida Scarllaty.


Passou então apresentando os seus próprios shows que obtiveram sucessos enormes nos palcos de Lisboa e na televisão, fazendo manchetes e as delícias de jornais e revistas ávidos de sensação na época.

Antes, Carlos Ferreira já tinha participado em diversos filmes portugueses, fazendo figuração periódica nos estúdios da Tobis Portuguesa, em vários filmes realizados por Arthur Duarte.

Destaque especial para o filme realizado por Manuel Guimarães, "O Crime de Aldeia Velha" (1963), baseado no livro do escritor Bernardo Santareno, com produção de António da Cunha Telles, onde participou do elenco com a atriz (francesa) Bárbara Laage, e os atores (portugeses) Mário Pereira e Rui de Carvalho, Maria Olguim, Alma Flora, entre outros.

Posteriormente, já como Guida Scarllaty deu corpo a diversos personagens em cinema na equipa da Cineground, em filmes realizados pela dupla João Paulo / Óscar Alves, os quais fizeram furor na época pelo arrojo dos temas abordados na década de 70 / 80.


Antes, tinha elencado grupos de teatro em várias companhias, sendo as mais significativas a Companhia de Teatro Gerifalto (infantil, 1960) e Companhia Nacional de Teatro (1965 - na foto à dtª.)) dirigida pelo famoso ator português "mestre" Francisco Ribeiro (Ribeirinho), entre outras.


No início dos anos 70, Carlos Ferreira escreve e realiza foto-novelas para a Agência Portuguesa de Revistas, que são o sucesso de leitura na época. Tinha também como hobi, dirigir um Grupo Cénico chamado "Os Columbófilos", com sede numa Coletividade de Recreios em Cascais, onde ele então tinha sua residência.


Foi aí nesse lugar que ensaiou ainda no tempo do Salazarismo, os primeiros passos na representação em travesti, apresentando-se com diversos personagens burlescos sempre vestido com extravagantes trajes femininos, nas festas organizadas pelo Clube em épocas especiais como o Fim de Ano ou Carnaval.

O sucesso dessas suas representações foi imediato, e transpôs 'fronteiras' chegando rumores á capital, onde se comentava o 'escândalo' que era um homem vestido de mulher naquela época em palco enfretando uma plateia de publico. Só grandes e consagrados atores de teatro como Raul Solnado ou José Viana tinham esse privilégio, sem ficarem conotados com desvios que a sociedade conservadora da época rotulava de homossexuais.

Homens de teatro como o famoso autor César de Oliveira e o encenador Carlos Avilez ou escritores como Mário Cesariny e a poetisa Natália Correia foram espectadores ‘de honra’ e privilegiados desses espectáculos, então considerados ‘perversos e malditos’.



Incentivado por isso, em 1975, Carlos Ferreira rompe barreiras, e 'atreve-se' a vestir pela primeira vez a pele de um personagem chamado "Guida Scarllaty", uma vamp glamourosa, atrevida e sofisticada, com guarda-roupa suntuoso de alta fantasia, misto de luxo e burlesco, inaugurando nessa data aquele que seria o primeiro e mais famoso Café-Concerto de Lisboa dedicado a shows onde o espetáculo de travesti era atração principal.

Foi a grande provocação nacional.

A Revolução no Espectáculo



Portugal atravessava na época a Revolução dos Cravos, no 25 de Abril de 1974, um tempo complicado na vida política, social e costumes de Portugal, que culminou com o chamado 'Verão quente' de 1975. “Vivia-se uma época muito complicada, estranha mesmo, com uma inesperada sensação de liberdade, mas com um domínio esquerdista que chegou assustar. De qualquer modo vivia-se a liberdade no seu auge, o primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo mandava as pessoas à merda, e os cabos milicianos do COPCOM entravam no Scarllaty Clube de G3 ao ombro. Havia membros do Concelho da Revolução que eram clientes assíduos (Vitor Alves e Compª.), nos espectáculos, ao fim da noite embebedavam-se lá pelas quinhentas, e acabavam na pista a fazer mariquices imitando os travestis!” (Sic. Livro de Manuela Gonzaga).



É antológico no meio artístico português, o episódio passado entre Guida Scarllaty e uma manifestação de trabalhadores da construção civil que passava à porta do seu Clube, que ficava na Rua de S. Marçal, 111, a meio caminho do Palácio de S. Bento. A manifestação organizada pela esquerda começara a percorrer as ruas de Lisboa depois de os trabalhadores finalizarem seu dia de trabalho, e atrasara sua chegada prevista para a Assembleia da República, ali chegando perto da meia-noite. A essa hora realizava-se no Scarllaty Clube um espetáculo que tinha sido agenciado por uma rent-a-car para festejar seu aniversário com o empregados.

O barulho ensurdecedor de palavras d'ordem de manifestantes interromperam por bastante tempo a representação. Guida Scarllaty enfurecida, saiu porta fora do Clube, e tal como estava vestida em cena, de grande peruca loira, pestanas negras e vestido comprido de lantejoilas prateado, subiu para cima do capôn de seu carro que estava estacionado à porta, gritando: "Vão trabalhar malandros!". Gerou-se logo confusão e burburinho, entre manifestantes e público da sala. A polícia teve de intervir. Guida Scarllaty regressou ao palco de peruca amassada e o seu carro, um Mercedes 200D ficou danificado.





No dia seguinte, os jornais falavam da 'manifestação dos pedreiros' mas era Guida Scarllaty que figurava à cabeça da manchete. O jornal 'Actualidades' dirigido pelo polémico jornalista Silva Nobre chamava-lha "a nova Maria da Fonte". Os jornais não deixavam passar em branco o que acontecia no Scarllaty Clube. A casa enchia rapidamente, e muita gente ficava de fora, o que aguçava ainda mais a curiosidade de quem não conseguia entrar.


Era de facto uma grande variedade a elite de gente do espectáculo e das artes e letras que predominavam na noite scarllatiana, num ambiente misto, porque nunca foi definido como gay absoluto. Guida Scarllaty dizia que ‘ambientes elitistas são demasiado redutores, e sempre gostei das grandes misturas e confusões...’ Nessa época não havia jet-set. Os famosos eram os que viviam a noite da movida lisboeta. (Sic. Livro de Manuela Gonzaga).





A apresentação de Guida Scarllaty na época foi muito comentada, mas também saudada fortemente pela crítica da especialidade, que a considerou de arrojada mas talentosa nos personagens interpretados pelo elenco que Scarllaty liderava.


Durante anos o sucesso foi enorme, sempre com espectáculos de lotações esgotadas, e o Café-Concerto o local mais 'in' de Lisboa. O Scarllaty Clube é o pioneiro deste novo tipo de espectáculo em Portugal, e arrasta atrás de si outros empresários que copiando o estilo tornam o espectáculo de travesti na atração da época em Lisboa, com a abertura de novos pequenos cafés-concerto como o Rocambole, Ronda 77, Trumphs e Finalmente, entre outros.




Uma avalanche de novos e bons artistas nasce então pela mão de Guida Scarllaty: Lídya Barllof, Doll Phoenix, Ruthe Bryden, Zizi Mayer, Belle Dominique, Wanda Morelly, entre muitos outros. E até a então jovem Deborah Cristal passa por entre as plumas e lantejoilas do camarim de Guida Scarllaty, numa experiência e inspiração que se lhe tornaria inesquecível durante a sua carreira.


É a época de ouro do espectáculo de travesti em Portugal!

segunda-feira, 14 de abril de 2008

A crítica a seus pés



Em 1976, Guida Scarllaty protagoniza uma das maiores rábulas de sua carreira, apresentando a candidatura no Hotel Embaixador, em Lisboa, às Eleições para a Presidência da República, satirizando os militares e políticos que detinham o poder.





Numa surrealista Conferência de Imprensa repleta de um batalhão de jornalistas e fotógrafos, apresentou-se vestida de "generála de sete estrelas" e assume-se como a "candidata de todos indecisos!". "Votem em mim, que eu divirto-os e satisfaço a todos!", era o seu slogan. Dessas eleições, saiu eleito Presidente da República o General Ramalho Eanes, e viviam-se então anos de muita criatividade, com a artista de sucesso em sucesso. São dessa época espectáculos como 'Obrigado Lisboa', 'Vivre La Folie', 'As Meninas do Vira-que-Virou', 'Bonecas de Luxo', 'Virgens à Portuguesa' - entre outros, e o grande sucesso que esteve mais de um ano em cena - o espectáculo 'Goodby Chicago', considerado pela crítica como o "Melhor Espectáculo do Ano". Sucessos atrás de sucessos. Ao fim do 1º. Ano de existência, as pessoas começaram a fazer toiletes para assisrtir às estreias e às festas do Scrallaty Clube, quando ‘vestir bem’ significava ser burguês ou fascista.





Começa então a grande movida pelo Pincipe Real a partir da abertura do Scarllaty Clube. Estilistas como António Augustos mancam ponto habitual nos shows do Scarllaty, o costureiro José Carlos faz os primeiros desenhos no Scarllaty, a sua 'musa' inspiradora, a modelo Laura Diogo - mais tarde Misse Portugal, integra o grupo d' 'As Doce', o Carlos Plantier faz a 1ª. grande reportagem no 'Século Ilustrado', o Vitoriano Rosa na 'Plateia', a Maria Virgínia de Aguiar no 'Correio da Manhã', o Eduardo Gageiro fotografa... o João Alves da Costa escreve sobre o Scarllaty no 'Diário Popular', a Vera Lagoa no 'Sol' e depois no 'Diabo', o Adriano de Oliveira no 'Diário de Notícias', o José Luis de Macedo no 'Exito', o Meira da Cunha cita Roland Barthes na 'Capital', e o Abel Dias faz as primeiras fotografias de famosos no Scarllaty.





Na época, o Scarllaty Clube ganha o Prémio da Casa da Imprensa para o melhor espectáculo do ano com "Goodby Chicago", (na foto em baixo) baseado numa peça musical em cena na Broadway, Nova Iorque, e que recentemente deu o filme "Chicago", com a ousadia do jornalista Neves de Sousa a incluir o travesti de Guida Scarllaty na Grande Noite do Fado, no Coliseu dos Recreios (1978), em Lisboa, onde lhe foi entregue o prémio. (Sic. Livro de Manuela Gonzaga).


Em 1980, Guida Scarllaty declarava á imprensa inspirar-se nos seus trabalhos em duas grandes atrizes que tinham sido símbolos marcantes na sua juventude na arte de representar: a inesquecível comediante portuguesa Laura Alves e a sex-simbol do cinema americano Mae West. Recebeu diversos prémios de interpretação, tendo sido considerado o melhor ator comediante do ano com o Prémio da Imprensa em 1978, atribuido pela Casa da Imprensa de Portugal. Para além do Café-Concerto Scarllaty Clube onde actuava regularmente, Guida Scarllaty passou a atuar também nas melhores casas de espectáculo de Portugal, Teatros e Casinos, percorrendo o país sempre como convidado especial de grandes espectáculos de variedades, participando igualmente como atração de luxo em diversos espectáculos de Revista Musicada Portuguesa no famoso recinto chamado Parque Mayer, a pequena Broadway de Lisboa.





Como exemplo da coqueluxe em que Guida Scarllaty se transformara de atracção nessa época, uma empresa teatral das Produções Vasco Morgado anunciava em 1980 (foto ao lado), a sua participação na revista "Isso é Que Era Bom" no Teatro Variedades, em Lisboa, ao lado do famoso ator cómico Camilo de Oliveira e da actriz Manuela Maria, num quadro de apresentação cujo custo de produção significava um quarto do orçamento total investido no espectáculo, cujos cenários e guarda roupa eram luxuosos e deslumbrantes, evocativos dos bons tempos de Hollyoowd e desenhados pelo famoso figurinista espanhol Juan Soutullo.





Nos anos 80 dá-se o apogeu da carreira de Guida Scarllaty com convites para actuar e aparecer em tudo que era lugar e moda. Acontece mesmo um episódio inédito entre artistas, que ilustra bem a sua popularidade e a dificuldade de lidar com o mediatismo: na época, 'Nova Gente' era a revista 'cor-de-rosa' mais lida de público, artistas e famosos. A sua directora Maria Elvira Bento marcou uma entrevista com Guida Scarllaty á qual estava destinada a 'capa' da edição. O mestre fotógrafo José Marques marca sessões de fotografia, às quais Guida Scarllaty falta sistemáticamente... Atrazos de vedeta!






Que se saiba, foi a primeira - e única artista, a 'voltar costas' à fama que uma publicação dessas na época ainda mais lhe poderia grangear, a ambição de qualquer artista: ser 'manchete' e capa de revista!.
'Ela' confessará mais tarde: "nesse momento, era já um problema muito desconfortável para mim lidar com a popularidade quando saía á rua. Eu não nasci para ser famoso(a).
Aconteceu por acidente de percurso, e isso só me agradava quando pisava o palco. O resto já não me interessava".

domingo, 13 de abril de 2008

Carreira de sucesso

Nessa época, Guida Scarllaty faz vários programas para a Televisão Portuguesa de onde se destacam como sucessos as séries "Espelho dos Acácios", "O Que Eu Gostava de Ter Sido" e variadas intervenções em "directos" musicais" como "A Pirâmide" (na foto), quer na RTP como na SIC, e participa no programa de lançamento da TVI.

Aproveita igualmente para fazer uma viragem na sua carreira, optando pela função de 'enterteiner' apresentando consagrados artistas e cantores como atração do seu espectáculo.

É nessa época que apresenta espectáculos musicais dirigidos pelo famoso maestro Jorge Machado, e com cantores inesquecíveis como Simone - em noites inesquecíveis de concerto acompanhada ao piano, e ainda Verónika, ou Teresa Mayuco, em espectáculos de repertório poético; com António Calvário, Artur Garcia, Aurélio Perry, Clemente em espectáculos de música popular portuguesa, e até o Fado ali entrou em noites de glória pela voz de Beatriz da Conceição, entre tantos outros.
O Scarllaty transformara-se no bastião do espectáculo de Café-Concerto em Portugal, e era procurado pela elite de artistas, escritores e gente famosa.

São conhecidas as noites de farra que alguns membros do 'Concelho da Revolução' - com o então Major Vitor Alves à cabeça, ali faziam. (Sic. Livro de Manuela Gonsaga). Para além disso, Guida Scarllaty participou em diversos espectáculos de music-hall em Espanha, França, Inglaterra, Alemanha e EUA, numa carreira que durou mais de 25 anos.

De 1985 até 1995, Guida Scarllaty percorre o País com espectáculos de musical e revista, actuando nos principais Teatros, e divide a sua actividade entre o Norte e o Sul de Portugal. Radica-se no Algarve, região ao Sul de Lisboa onde residem seus pais, e também aí o seu talento se faz notar com fulgor quer na participação de inúmeros shows, mas também pela originalidade como produtor de diversos eventos de qualidade nas melhores casas de espectáculo e animação daquela região turística. Nessa época, com iniciativas da sua responsabilidade colocou Albufeira no roteiro dos grandes acontecimentos culturais e de animação nocturna no Algarve.

Para quem desconhece ou já esqueceu, grupos e artistas como Imagination, Nancy Nova, Fafá de Belém, Jocelyn Brown, Cicciolina, Cool Notes, Gal Costa e Samantha Fox (na foto, com quem teve acesa polémica nos jornais, pela forma como a artista se apresentou em palco: "Só tem mamas!... Vóz, nem piu! - afirmou"), foram algumas das grandes estrelas internacionais que vieram pela sua mão, pela 1ª. vez ao Algarve, e apresentadas nas melhores discotecas top da época. Foi uma década de invulgar animação naquela região, onde outros empresários vinham 'beber' inspiração.

O nome de Carlos Ferreira versus Guida Scarllaty, ficará para sempre ligado ao Music-Hall e ao espectáculo de travesti em Portugal pelo talento, profissionalismo e rigor de um pioneirismo que nele sempre incorporou, e como a artista mais glamourosa surgida alguma vez em Portugal.
São lendários o guarda roupa deslumbrante (foto em baixo) e os figurinos com que se apresentava em palco, jamais conseguido por qualquer outro artista português.
Pelas recentes notícias conhecidas através da imprensa em Portugal (2005), Guida Scarllaty (G.S.) fez uma pausa na sua actividade após 35 anos de intensa carreira, e doou grande parte do seu espólio artístico e valioso guarda roupa á Casa do Artista de Portugal, instituição que cuida de artistas em idade avançada, fundada pela iniciativa dos atores portugueses, e impulsionada pela mão do actor Armando Cortês e Raul Solnado.
Guida Scarllaty vive agora retirada dos pequenos palcos, fazendo fugazes aparições em ocasiões consideradas por si "muito especiais", voltando a dar lugar ao cidadão Carlos Ferreira, que se dedicou ao jornalismo, e vive viajando entre Portugal e o Brasil (onde entretanto se radicou) escrevendo as suas memórias, ou artigos para diversos jornais e revistas de seu país. Foi Relações Públicas em várias unidades hoteleiras do Algarve, e Director de Animação durante 12 anos numa das mais famosas discotecas do Algarve: Kiss. Hoje, é também diretor de um jornal de actualidades, publicação que ele próprio fundou e dirige. Guarda no baú das recordações os sucessos fulgurantes da sua Guida Scarllaty.

Um 'personagem' incontornável para muitos portugueses e representativo de uma época por si tornada inesquecível.
Mário Alberto

(Jornalista com carteira TE 189 - CNF - BI 1014329)

In memorian Júlio de Oliveira, jornalista que iniciou o livro de memórias sobre G.S., tendo falecido em 1993.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

GUIDA SCARLLATY


O DESPIR DO EGO




O HOMEM



Nasceu em Lisboa, já lá vão uns tempos. Mas sempre gostou do Algarve, a região que escolheu para viver. Recorda que, quando jovem, passava as suas férias estudantis com a família nas praias algarvias, e um dos petiscos favoritos eram as sardinhas assadas “numa tasca, ali em Portimão debaixo da ponte”, onde ainda hoje lá vai. Sempre que pode. Os tempos foram se passando e formou-se em arquitectura. Viajou muito, passou algum tempo fora de Portugal, onde encontrou um relacionamento amoroso que o conduziu a um casamento precipitado. Anos mais tarde a separação. Era o tempo da “Primavera Marcelista” que mascarava a ditadura. Com o 25 de Abril, a vida torna-se difícil para o jovem arquitecto: “Não havia investimentos, a economia estagnou, e muitos colegas meus optaram por outras paragens, o Brasil”.


De livre vontade, manteve-se em terras lusas e afirma, que face ao tumultuoso PREC (Processo Revolucionário em Curso) ocasionado pelo 25 de Abril, aderiu como simpatizante ao então PPD de Sá Carneiro. “Na época, qualquer atitude tomada, era ‘política’. E fui dos primeiros - acrescenta - a mostrar que a luta contra o avanço desenfreado do golpismo sob capa de comunismo, tinha de ser feita sem medo na rua, e não só nos gabinetes. Era a luta pelo pluralismo e pela liberdade de ideias”. Recorda então que, contra a opinião de sua Mãe (na imagem em cima, numa estreia do Scarllaty - Foto Correio da Manhã) e dos seus amigos e colegas de militância, em 1974 pegou numa mesa de campismo “e em pleno Rossio vermelho montei uma banca de megafone na mão, com pins, bandeiras e informação do PPD. Amigos meus observavam ao longe, caso houvesse sarilho. As pessoas diziam que eu era maluco, que me arriscava a apanhar uma boa tareia - António Capucho, mais tarde Secretário Geral do PSD foi um deles, mas o certo é que o fiz e, acreditem ou não, não me arrependi. Mostrei que assim é que tinha de ser”. E assim foi...

O ARTISTA


Profissionalmente desempregado em finais de 1974 e sem vislumbrar possibilidade de exercer a sua actividade, a nossa personalidade de hoje decidiu pegar em parte dos dinheirinhos amealhados e montar um clube nocturno.


Surgiu assim o primeiro “bar-disco” lisboeta, onde, na fase da euforia revolucionária, os clientes eram obrigados a entrar com smoking ou, pelo menos, em fato e gravata nas grandes festas. Gangas é que não. Pretendeu criar um espaço diferente, recusar as barbas intelectuais da comunização ultra-esquerdista que estavam em moda, e atrair “malta nova e desconhecida, mas com jeito para as artes do palco” e de preferêrncia, bem vestidos.


Fez várias experiências, e surgiu assim o "Scarllaty Club", onde foram apresentados alguns polémicos espectáculos e até apresentados jornais de tendência direitista. Vera Lagoa fez ali a festa de lançamento de "O Sol" de pouca (dita) dura, diga-se de passagem. Foi ousado e rompeu com o espectáculo tradicional. Apostou em algo diferente e o “Scarllaty Club” passou a café-concerto, um espaço que gerou a aparição dos primeiros travestis portugueses. Lídia Barllof escolheu aquele espaço como maternidade da sua vida artística onde conheceu os primeiros sucessos.


Mas, como quase sempre acontece, nem sempre as coisas correm como pretendemos. E o “Scarllaty” também passou de início por uma fase crítica, logo resolvida com mais um novo nascimento: o de Guida Scarllaty (na foto ao lado - o início). A nossa personagem de hoje conta-nos que tudo aconteceu perante a recusa de Lídia Barllof em participar num certo espectáculo de uma noite especial, caso não lhe fosse aumentado o cachet nessa mesma noite: “Foi um confronto desnecessário, uma quase 'chantagem'. Nós tinha-mos a casa cheia de público, e eu não podia falhar pela responsabilidade que tinha. Mesmo assim corri o risco, apesar de ainda nunca ter feito travesti em palco em Portugal. Peguei numa cabeleira, vesti o guarda-roupa disponível, arranjei-me o melhor que podia e, claro, arrisquei-me às assobiadelas, substituindo a Lídia Barllof nos mesmos números que ele fazia. Eu sabia-os todos de cor, foi só dar-lhes o meu jeito”.


E as coisas correram exactamente assim, Guida Scarllaty, a nova estrela do travestismo português acabava de nascer, para rapidamente destronar Barllof do ceptro de vedeta da sua casa. O sucesso multiplicou-se e as polémicas surgiram, qual delas a mais extravagante e desnecessária.


QUEDA E ASCENSÃO



Anos depois, Scarllaty (Guida) em plena ascensão. Scarllaty (Club) em queda frontal. Convidada para cada vez mais novos espectáculos, a nova vedeta é obrigada a percorrer o país e a ausentar-se por longos períodos daquele palco que a viu nascer (na foto, em Londres, no Sttardust Casino, com o famoso mágico Eiric Zee).


Em cada regresso repara que as modas até já param mal, com os empregados a fazerem das suas. Decide fechar o clube e dedicar-se à sua carreira e nova actividade: a de actor. E, tudo vai correndo bem superando mesmo as expectativas. Percorre o país de lés-a-lés e afiança preferir o público nortenho ao restante: “Exigem mais do artista , mas também quando satisfeitos contemplam-nos com a maior ovação”.


Refugiado no Algarve, durante longos anos “logo após o fecho do “Scarllaty Club”, Carlos Ferreira foi-se desmultiplicando em inúmeras actividades: de actor, a relações públicas passando naturalmente pela de animador de grandes espaços e discotecas. Desde 2005 que divide a sua actividade entre Portugal e o Brasil, onde tem participado em inúmeras actividades culturais no mundo do espectáculo. Neste momento é mesmo o Director Geral de animação numa conceituada empresa hoteleira luso-brasileira no Estado da Bahia.


SÓ?


Alguns dizem que é uma pessoa só. Mas não será nada assim: vive rodeado de alguns amigos e de muitos animais, particularmente cães, pelos quais tem uma estima especial, e na companhia dos seus progenitores. Uma família (na foto, acompanhado dos seus pais). E, muitas vezes, convida os amigos para um curto espaço de férias na sua "casa" algarvia, sendo um autêntico mestre na arte de bem receber.


Da sua vida sentimental pouco se sabe, mistério bem guardado, mas socialmente é uma pessoa que não sabe e não quer estar sozinha.


É Guida Scarllaty, sim senhor. Hoje já com os aninhos a aparecerem na sombra, mas mesmo assim afiança que ainda não é altura para escrevermos a crónica das suas memórias. “D. Margarida”, como carinhosamente chama à personagem por si criada (Guida Scarllaty), ainda está “para lavar e durar”, promete.


A nossa personagem de hoje é, pois, o pai de “Guida Scarllaty” e veste-lhe mesmo a pele. É um homem como outro qualquer, mas escolheu conscientemente o lado da profissão de artista mesmo no fio da navalha. Com todos os riscos e consequências. E, pelo que lhe conhecesse-mos, estamos crentes de que se o tempo voltasse atrás, no essencial, não o mudaria nada.


Senhores e senhoras acabamos de apresentar Carlos Ferreira versus “Guida Scarllaty”.


Uma salva de palmas, por favor.


Autor: Júlio Oliveira


01 de Novembro de 1992 - Extratos de artigo publicado no Jornal “Primeiro de Janeiro”

terça-feira, 8 de abril de 2008

Algumas notas


QUEM É GUIDA SCARLLATY?...



As primeiras recordações que tenho do Carlos Ferreira datam de há bastantes anos (1962) a quando da presença no Teatro Monumental da Companhia do Teatro do Gerifalto. Eu tentava ingressar no elenco, e ele já lá estava. Mas a ambos nos unia a pouca sorte: eu nunca fui admitido, e o Carlos nunca lá teve o lugar, ou a oportunidade que realmente teria merecido... Depois, os nossos caminhos afastaram-se, embora tivesse-mos continuado por largos anos de vida artística e jornalística, (os 2 trabalhamos na Agência Portuguesa de Revistas).
Recordo-me a seguir de o ver como personagem de destaque em “O Crime da Aldeia Velha” filme do saudoso Manuel Guimarães que marcou o seu primeiro contacto com o cinema. Nessa altura pensei que era realmente necessária uma grande força, uma inacreditável tenacidade para lutar por uma carreira a todos os níveis infrutífera, se não no quiséssemos sujeitar à mediocridade. Eu desisti de ser actor, e ele mais tarde também, exactamente porque o suficiente ou o medíocre não se adaptavam ao seu espírito combativo, e à sua personalidade, já nesse tempo bem marcante e vacinada.


Hoje, creio que foi essa força que anos depois fez aparecer retumbantemente a Guida Scarllaty. Há bem pouco tempo, a quando da sua grandiosa estreia no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, a mãe que sempre tem acompanhado com carinho a carreira vertiginosa do filho (e quantas mães em Portugal terão esta capacidade de compreensão?) contava-me que aos cinco anos o vestiu de lavadeira e o passeou no jardim do Campo Grande..., e o Carlos Ferreira conta-me com um certo sorriso que aos doze anos no Colégio São João de Brito, se vestia de Shirley Temple e fazia “espectáculos” de fim de curso...

Ambicioso, e farto de um ambiente artístico que não estava de acordo com a sua maneira de ser, partiu para a Alemanha e aí aconteceu a sua primeira “estreia”, em público, como “travesti”. E no regresso a Portugal ( estava mais do que nunca decidido a realizar na sua terra aquilo que sonhava) actua em festas particulares e no Clube dos Columbófilos, dirigindo o grupo de teatro. Aconteceu em 25 de Abril, e alguns meses depois a abertura do Scarllaty Club.





Em Novembro de 1974 surge o primeiro espectáculo de Travesti, sem que Guida Scarllaty seja ainda a primeira figura. Pelo contrário, decide apagar-se até poder calcular as reacções do público. E em 1 de Janeiro de 1975 nasce finalmente a Vedeta. Ela aí está, envolta nas plumas, no brilho das lantejoulas e ofuscada pelas luzes, Guida Scarllaty é então aplaudida pelo público, e por uma Impressa ainda atónica pelo sucesso popular. No seu próprio palco é vedeta de “Obrigado Lisboa”, “Bom jour, 76”, “Vivre la Folie”, “Je Suis Paris”, “Bonecas de Luxos”, “Les Girls” e tantos outros espectáculos que a elevam a um primeiríssimo plano da cena em Portugal.




Acompanho o par e passo toda esta ascensão, e com mais assiduidade quando Carlos Ferreira pensa montar “Good-bye, Chicago”, convidando-me para realizar o pequeno filme de abertura, daquele que foi o melhor espectáculo de travesti feito em Portuga, e um dos melhores a nível internacional. Entusiasmo-me pelas suas interpretações, e convido Guida Scarllaty a interpretar um personagem no meu filme “Aventuras e Desventura de Julieta Pipi”. Ao mesmo tempo filmamos o filme de abertura para “Good-Bye Chicago”. É nesta altura que a “Bomba Rebenta”, só assim se consegue descobrir “A Chave” do seu êxito. A surpresa é geral, quer da equipa técnica quer da artística: a humildade e o apego que dedica ao trabalho denota um amor inultrapassável, e é assim que me dou conta do brilhante profissional, sempre disposto a repetir, disposto a trabalhar arduamente até a perfeição. Um se não: tal como as “vedetas”, Guida Scarllaty chega sempre “atrasada”!





Atacada pelos colegas de “querer ser vedeta” sempre se defendeu alegando o trabalho da equipa. Mas a verdade é que trabalho de equipa não invalida que exista uma “Vedeta”. Impunha-se que Guida Scarllaty se afirmasse como tal, e foi horas antes de uma célebre Conferência de Impressa no Hotel Altis, que o convenci, finalmente, a tomar a decisão de ser o que realmente é: a “Vedeta” incontestada do Show de Travesti Nacional.


Muito se tem dito de mal e de bem, mas tudo tem ajudado esta controversa figura. Porque é no esplendoroso palco do Teatro Monumental, ou nos grandiosos palcos dos dois Coliseus de Lisboa e do Porto, perante milhares de pessoas, aplaudindo em delírio, que o público tem reconhecido na sua presença o seu talento ao serviço do Mundo do Espectáculo!
E reparo, com certo espírito divertido, nos olhares “invejosos” das senhoras que assistem ao espectáculo. Reparo como se sentem “ofuscadas” com aquela figura de mulher deslumbrante que "ele" representa. Mas também reparo depois como acabam por aplaudir delirantes, e rendidas a um talento invulgar.


Guida Scarllaty é efectivamente uma Vedeta do Music-hall, do Teatro, do Cinema e da Televisão. Por detraís das suas cabeleiras e das longas pestanas, o Homem que organiza e dirige o espectáculo, o guarda-roupa, que escolhe os números, a direcção dos artistas, o pessoal e o próprio negócio: Carlos Ferreira/Guida Scarllaty... Heterónimos. Tal como em Fernando Pessoa.

Porque... É em nós que é tudo.

Aplausos para Guida Scarllaty.


Óscar Alves

Jornalista, Artista Plástico e Realizador de Cinema (Cineground)


(Folha do Programa do espectáculo “Good-bye Chicago” - 1978 / Prémio da Imprensa)

A OPINIÃO DA CRÍTICA



“Nem a cultura, nem a sua destruição são eróticas: a fenda entre ambas é que se torna erótica”.




R. Barthes



Frustaram-se aqueles que movidos por um racionalismo intransigente, por parvoíce trocista, heroísmo doméstico-conjugal, ou “voyeurismo” idiota e até mesmo por um certo moralismo político de última hora, tentaram destruir ou escarnecer o espectáculo travesti do Scarllaty Clube.



Na verdade, voluntariamente, o travesti sentou-se no banco dos réus, ao apresentar-se pela primeira vez em palco, há três anos, com o show “Obrigado Lisboa”. O público ouviu através de espectáculos sucessivos o seu depoimento e ditou a sentença: Foi condenado a viver!



O espectáculo de travesti de Guida Scarllaty apresenta-se com uma nova linguagem, uma estrutura diferenciada no mundo do espectáculo. O facto de não se pautar pelas regras canónicas do teatro ou do espectáculo de variedades tradicional, não constitui razão para ser vilmente dilacerado ou atirado para o “ghetto”. O Travesti, enquanto espectáculo (revolucionário) onde a ambiguidade se apresenta com um discurso identificável com a própria sociedade, é incontestavelmente “Arte de Representar” e vive como Music-Hall que é. Não é possível justificar aqui a validade do travesti, em termos históricos, nem tão pouco podemos alinhar os seus fundamentos sociais e psicológicos. Sabe-se que a origem da sua trajectória se perde nos tempos, conhece-se o seu esplendor nos tempos clássicos, e também as suas mortes clássicas.



Porém não cabe nestes centímetros destinados à apresentação de um novo espectáculo do Scarllaty Clube, referir esses aspectos. Limitámo-nos nestas breves linhas, a sugerir uma leitura atenta do novo show “Good-Bye Chicago” concebido e realizado por Guida Scarllaty libertada da lógica excessiva, fundamentada nos valores sociais em vigor, bem ao aperto de censuras acumuladas.


Meira da Cunha (Jornalista de “A Capital”) Outubro 1978









“... O trabalho apresentado no Scarllaty Clube é francamente bom e, pelo que observamos na assistência que esgotava a sala, agrada à esmagadora maioria. Guida Scarllaty está de parabéns”.

Vera Lagoain Semanário “O Diabo” de 28/06/77


“.... Guida Scarllaty” esteve num dos seus melhores dias de actor em travesti, executando um “Play Back” notável e apresentando o espectáculo com grande desenvoltura e sentido de humor...”

Heitor Patoin Jornal “Edição Especial” de 04/12/77






“... Show” de vincada tradição em toda a Europa, o espectáculo de travesti ganha agora estatuto e enorme adesão em Portugal. O Scarllaty Clube foi adaptado-o generalizando, vencendo os preconceitos, até chegar ao sucesso”.

In Jornal “A luta” de 28/10/76


“... O ambiente do “Scarllaty” é integralmente diferente das demais casas do género. Experiência bem distinta, o Scarllaty merece uma visita. Reside ali uma preocupação de espectáculo comprometido com a tentativa de qualificação artística...”

Lauro Antónioin Jornal “Música e Som” de 24/02/77




“O espectáculo é invulgarmente divertido. Verdade e honra lhe desejam feitas, Guida Scarllaty trouxe o travesti para Portugal!”

Maria Elvira Bento in Revista “Nova Gente” 15/10/77


“Com a recente, tão esperada, democratização (também) dos costumes, Lisboa abalança-se na experiência de mais um passo para o moderno. Falamos neste caso de um novo show no Scarllaty Clube que vimos e gostamos, e de onde saímos divertidos...”

Carlos Plantierin Revista “Século Ilustrado” 31/01/76




“... No Scarllaty Clube, em Lisboa, o show é uma espantosa feérie, luxuosa, magnífica, digna de qualquer grande capital como Paris, Londres ou New York. Guida Scarllaty é hoje a grande estrela do espectáculo de music-hall em Portugal”...

Silva Nobrein Semanário “A Barricada” 01/10/77


“... Um cheirinho político (da esquerda) incomoda o travesti do Scarllaty”...

In “Diário Lisboa” 22/2/78


“O Scarllaty proporciona-nos um espectáculo diferente. Está no seu ritmo de apresentação um facto de importância Fundamental. CARLOS FERREIRA (aliás Guida Scarllaty) atinge o êxito com um espectáculo equilibrado, muito divertido e despretensioso”...

João Garinin Jornal “O Dia” 27/02/78








“... Aliás, o “Scarllaty Clube” é “Show” desde a porta de entrada até à minúscula pista, luzes, tudo é “This is entertainment”, pois ali o esplendor do show, todo o seu “Feeling” foi construído na base de quem sabe, sente, vive, respira “show”.



E há-de morrer em “Show”.


Domingos de Azevedoin Jornal Semanário “O Tempo” 25/02/78