terça-feira, 8 de abril de 2008

Algumas notas


QUEM É GUIDA SCARLLATY?...



As primeiras recordações que tenho do Carlos Ferreira datam de há bastantes anos (1962) a quando da presença no Teatro Monumental da Companhia do Teatro do Gerifalto. Eu tentava ingressar no elenco, e ele já lá estava. Mas a ambos nos unia a pouca sorte: eu nunca fui admitido, e o Carlos nunca lá teve o lugar, ou a oportunidade que realmente teria merecido... Depois, os nossos caminhos afastaram-se, embora tivesse-mos continuado por largos anos de vida artística e jornalística, (os 2 trabalhamos na Agência Portuguesa de Revistas).
Recordo-me a seguir de o ver como personagem de destaque em “O Crime da Aldeia Velha” filme do saudoso Manuel Guimarães que marcou o seu primeiro contacto com o cinema. Nessa altura pensei que era realmente necessária uma grande força, uma inacreditável tenacidade para lutar por uma carreira a todos os níveis infrutífera, se não no quiséssemos sujeitar à mediocridade. Eu desisti de ser actor, e ele mais tarde também, exactamente porque o suficiente ou o medíocre não se adaptavam ao seu espírito combativo, e à sua personalidade, já nesse tempo bem marcante e vacinada.


Hoje, creio que foi essa força que anos depois fez aparecer retumbantemente a Guida Scarllaty. Há bem pouco tempo, a quando da sua grandiosa estreia no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, a mãe que sempre tem acompanhado com carinho a carreira vertiginosa do filho (e quantas mães em Portugal terão esta capacidade de compreensão?) contava-me que aos cinco anos o vestiu de lavadeira e o passeou no jardim do Campo Grande..., e o Carlos Ferreira conta-me com um certo sorriso que aos doze anos no Colégio São João de Brito, se vestia de Shirley Temple e fazia “espectáculos” de fim de curso...

Ambicioso, e farto de um ambiente artístico que não estava de acordo com a sua maneira de ser, partiu para a Alemanha e aí aconteceu a sua primeira “estreia”, em público, como “travesti”. E no regresso a Portugal ( estava mais do que nunca decidido a realizar na sua terra aquilo que sonhava) actua em festas particulares e no Clube dos Columbófilos, dirigindo o grupo de teatro. Aconteceu em 25 de Abril, e alguns meses depois a abertura do Scarllaty Club.





Em Novembro de 1974 surge o primeiro espectáculo de Travesti, sem que Guida Scarllaty seja ainda a primeira figura. Pelo contrário, decide apagar-se até poder calcular as reacções do público. E em 1 de Janeiro de 1975 nasce finalmente a Vedeta. Ela aí está, envolta nas plumas, no brilho das lantejoulas e ofuscada pelas luzes, Guida Scarllaty é então aplaudida pelo público, e por uma Impressa ainda atónica pelo sucesso popular. No seu próprio palco é vedeta de “Obrigado Lisboa”, “Bom jour, 76”, “Vivre la Folie”, “Je Suis Paris”, “Bonecas de Luxos”, “Les Girls” e tantos outros espectáculos que a elevam a um primeiríssimo plano da cena em Portugal.




Acompanho o par e passo toda esta ascensão, e com mais assiduidade quando Carlos Ferreira pensa montar “Good-bye, Chicago”, convidando-me para realizar o pequeno filme de abertura, daquele que foi o melhor espectáculo de travesti feito em Portuga, e um dos melhores a nível internacional. Entusiasmo-me pelas suas interpretações, e convido Guida Scarllaty a interpretar um personagem no meu filme “Aventuras e Desventura de Julieta Pipi”. Ao mesmo tempo filmamos o filme de abertura para “Good-Bye Chicago”. É nesta altura que a “Bomba Rebenta”, só assim se consegue descobrir “A Chave” do seu êxito. A surpresa é geral, quer da equipa técnica quer da artística: a humildade e o apego que dedica ao trabalho denota um amor inultrapassável, e é assim que me dou conta do brilhante profissional, sempre disposto a repetir, disposto a trabalhar arduamente até a perfeição. Um se não: tal como as “vedetas”, Guida Scarllaty chega sempre “atrasada”!





Atacada pelos colegas de “querer ser vedeta” sempre se defendeu alegando o trabalho da equipa. Mas a verdade é que trabalho de equipa não invalida que exista uma “Vedeta”. Impunha-se que Guida Scarllaty se afirmasse como tal, e foi horas antes de uma célebre Conferência de Impressa no Hotel Altis, que o convenci, finalmente, a tomar a decisão de ser o que realmente é: a “Vedeta” incontestada do Show de Travesti Nacional.


Muito se tem dito de mal e de bem, mas tudo tem ajudado esta controversa figura. Porque é no esplendoroso palco do Teatro Monumental, ou nos grandiosos palcos dos dois Coliseus de Lisboa e do Porto, perante milhares de pessoas, aplaudindo em delírio, que o público tem reconhecido na sua presença o seu talento ao serviço do Mundo do Espectáculo!
E reparo, com certo espírito divertido, nos olhares “invejosos” das senhoras que assistem ao espectáculo. Reparo como se sentem “ofuscadas” com aquela figura de mulher deslumbrante que "ele" representa. Mas também reparo depois como acabam por aplaudir delirantes, e rendidas a um talento invulgar.


Guida Scarllaty é efectivamente uma Vedeta do Music-hall, do Teatro, do Cinema e da Televisão. Por detraís das suas cabeleiras e das longas pestanas, o Homem que organiza e dirige o espectáculo, o guarda-roupa, que escolhe os números, a direcção dos artistas, o pessoal e o próprio negócio: Carlos Ferreira/Guida Scarllaty... Heterónimos. Tal como em Fernando Pessoa.

Porque... É em nós que é tudo.

Aplausos para Guida Scarllaty.


Óscar Alves

Jornalista, Artista Plástico e Realizador de Cinema (Cineground)


(Folha do Programa do espectáculo “Good-bye Chicago” - 1978 / Prémio da Imprensa)

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